sábado, 17 de setembro de 2011

O "movimento estudantil" e a censura

Quando eu era calouro da FFLCH-USP, o filme Je vous salue Marie (1984), de Jean-Luc Godard, havia sido proibido no Brasil (com apoio da igreja, por sinal; Dom Hélder Câmara até defendeu enfaticamente a proibição ao debater o assunto com jornalistas na TV). Mas um grupo de alunos veteranos levou os calouros para assistir à fita na sala de vídeo da faculdade, e uns jornalistas fizeram uma pequena matéria a respeito que saiu publicada no Estadão.


Achei o filme uma bela droga, mas fiquei contente de haver participado de um ato de resistência aos resquícios da censura. É claro que o tal "movimento estudantil" não fez aquilo para defender a democracia, pois os ativistas universitários queriam apenas substituir uma ditadura de direita por uma ditadura comunista. Constatei isso nos anos seguintes de faculdade, especialmente durante um período de um ano em que participei do Centro Acadêmico e compareci à diversas assembleias estudantis. Já então as principais entidades que deveriam representar os estudantes nada mais eram do que aparelhos de partidos de esquerda, de modo que a política estudantil constituía apenas uma caixa de ressonância de conflitos entre partidos e tendências autoritárias como PC do B, PT, O Trabalho, Convergência Socialista (atual PSTU), entre outras.

Hoje as coisas são diferentes, mas nem tanto. Com o fracasso da revolução, os ativistas universitários contentaram-se em transformar a UNE numa instituição chapa branca que recebe milhões de Reais do governo federal todos os anos, não presta contas de como esse dinheiro é gasto (mesmo quando há denúncias de mau uso) e organiza manifestações de rua a favor ou contra a instalação de CPIs dependendo de qual é o governo de turno, não dos indícios de corrupção. Outra mudança relativa é que, embora a censura prévia tenha sido extinta e proibida pela Constituição Federal, novas formas de censura já começam a ser praticadas. É o que se vê agora com A serbian film - terror sem limites, de Srdjan Spasojevic – como se pronuncia isso?

Bem, todos os comentários que li a respeito dão conta de que o filme é um lixo intelectual e estético, mas isso não muda o fato de que as ações legais que vêm sendo tomadas para impedir sua exibição reinstauram a censura prévia no país. O DEM do Rio de Janeiro entrou com um pedido de liminar contra a exibição do filme alegando que a obra fere o Estatuto da Criança e do Adolescente porque, supostamente, incentiva a pedofilia. A Caixa Econômica Federal ameaçou cancelar seu patrocínio ao Festival RioFan se a obra não fosse retirada da programação do evento, o que de fato aconteceu. Mais tarde, o Ministério da Justiça suspendeu os trâmites para dar ao filme sua classificação indicativa definitiva, o que impede que ele seja exibido nos cinemas. A justificativa do ministério é que a sua Consultoria Jurídica vai primeiro avaliar a denúncia de incitação à pedofilia feita pelo DEM e a recomendação do Ministério Público Federal de Minas Gerais (manifesta em um inquérito civil público) de que o filme seja vetado em todo o território nacional.

Ora, como escreveu o jornalista Reinaldo Azevedo, já existem dispositivos legais que permitem punir quem fizer incitação ao crime de pedofilia ou a qualquer outro crime, de sorte que as acusações contra o filme não autorizam violar a constituição para censurá-lo previamente. E os ativistas universitários, vão agir agora como agiram em relação ao filme de Godard? Duvido muito. A movimentação para censurar o filme começou com um partido que os estudantes acusam de "conservador", mas logo foi encampada pelo governo Dilma por meio do Ministério da Justiça e de um banco estatal!

Além disso, vale notar que os argumentos em favor da proibição unem setores de esquerda e de direita – pelo menos, dessa direita que temos no Brasil – porque o discurso politicamente correto converge vez por outra com certo conservadorismo em propostas de cerceamento da liberdade de expressão. Como já disse alguém, os extremos sempre se tocam.

OBS.: Publicado originalmente em 10 de agosto de 2011, no site Geografia em Debate

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