segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Relendo "Primeira Leitura" e a história das Cruzadas

No post anterior, citei uma entrevista antiga de José Arthur Giannotti à revista Primeira Leitura, uma publicação cujos temas centrais eram política, economia e pensamento. Foi uma grande pena o fechamento dessa publicação, já faz alguns anos. Quando terminei de escrever aquele post, me pus a folhear a revista e fiquei com saudades. Estava lá um excelente artigo do filósofo Roberto Romano sobre os conceitos de golpe de Estado e razão de Estado, além de vários textos muito bem escritos e fundamentados sobre política brasileira e internacional, economia, geopolítica, história e cultura, entre outros assuntos.

Assim, me veio a vontade de falar agora de um artigo em que o jornalista Hugo Estenssoro (2005) comenta as pesquisas históricas que, nos últimos anos, puseram abaixo as interpretações ensinadas em nossas escolas a respeito das Cruzadas. Ele começa ridicularizando o filme Cruzada, de Ridley Scott, o qual procuraria defender a tese de que os muçulmanos da época, liderados por Saladino, criaram uma civilização multicultural na região da Palestina que acabou sendo abortada pelo "extremismo cristão". 


Bem, eu assisti esse filme (um bom divertimento, por sinal), e a interpretação histórica que ele carrega me pareceu um tanto diferente. No filme, Saladino é pintado como um soberano pragmático e tolerante, mas fortemente pressionado por um clero muçulmano radical que exige dele a tomada de Jerusalém. Quando os extremistas cristãos representados pelos templários começam a massacrar muçulmanos, Saladino é obrigado a ir à guerra pela cidade a fim de não afrontar o clero. Nesse sentido, a mensagem do filme é que muçulmanos e cristãos poderiam ter convivido pacificamente se os líderes tolerantes de ambos os lados não tivessem sido forçados a guerrear por causa de grupos radicais presentes também nos dois lados.

Seja como for, é absolutamente certo que esse filme estava pouco ou nada preocupado em fazer uma boa reconstituição do período e de seus personagens, já que os objetivos principais do diretor eram divertir a plateia e reinterpretar a história à luz de ideologias politicamente corretas sobre todo mundo ter um pouco de razão. Daí que o artigo de Estenssoro é primoroso em utilizar fontes acadêmicas recentes para derrubar esse tipo de leitura ideologizada da história. Começa destruindo o Saladino retratado no filme com a citação literal de um texto escrito pelo próprio secretário desse soberano ao narrar uma importante vitória militar:
Saladino ordenou que eles [os prisioneiros cristãos] fossem decapitados, preferindo-os mortos a tê-los cativos. Com ele estava um grupo de sábios e sufis, assim como homens pios e ascetas; cada um deles rogou que se lhe permitisse matar um deles [cristãos], e puxaram suas espadas e levantaram suas mangas. Saladino, com expressão alegre, estava sentado no seu trono, e os infiéis mostravam negro desespero.
Em seguida, ele comenta, entre vários outros, o livro The invention of the Crusades, de Christopher Tyerman, a fim de corrigir as interpretações históricas ideologizadas que nós aprendemos. Vale citar:
[...] as Cruzadas não tiveram como alvo apenas a ocupação muçulmana da Palestina (as guerras de reconquista ou libertação da Espanha e de Portugal tinham o status de cruzada) e o Islã (houve cruzadas contra hereges cristãos na Europa); não houve motivação econômica (ao contrário, a maior parte dos cruzados voltava empobrecida para uma vida de dívidas); não houve razões hegemônicas nem o que hoje chamaríamos de geopolítica (isso viria muito depois, quando o Islã imperialista voltaria a se tornar uma ameça direta à civilização europeia, chegando às portas de Viena); e, sobretudo, as Cruzadas não constituíram uma aberração da doutrina cristã.
De fato, as Cruzadas foram um fenômeno defensivo, ao contrário do avassalador movimento imperialista muçulmano. O qual foi de fato um "movimento", na medida em que foi (e ainda é) um corpo de doutrina inseparável da sua história desde o primeiro instante: o profeta Maomé realizava uma média de nove campanhas militares por ano [...].
O artigo prossegue citando outros autores para demonstrar que o imperialismo muçulmano foi um processo de longa duração que consistia em "tomar território e converter pela força", algo que, em toda a história do cristianismo, ocorreu uma única vez, na Cruzada do Báltico. Mas, para não me alongar demais, encerro pondo em destaque o seguinte: a historiografia recente demole a explicação econômica das Cruzadas, a qual me foi ensinada na escola. Esqueçam aquela tese de que os cruzados eram senhores feudais empobrecidos por guerras na Europa e que decidiram ir à Palestina a fim de se recuperar financeiramente com saques e a tomada de outras terras. Como visto acima, os líderes das Cruzadas eram pessoas de posses que se empobreceram no processo. Assim, esse fenômeno se explica por fatores culturais ligados ao modo de pensar dos cristãos da época e à ameça do imperialismo muçulmano, igualmente motivado por ideias religiosas.

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ESTENSSORO, H. A cruzada revisionista. Primeira Leitura, n. 41, jul. 2005.

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