quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Niemeyer apanhava da esquerda marxista e também da não-marxista

Vejamos aqui um comentário muito pertinente de Anselmo Heidrich ao post "Oscar Niemeyer é um déspota":
Dois anos antes de ser inaugurada, a poetiza americana E. Bishop visitou Brasília e se surpreendeu com a secura e desolação do local. Ela estava antevendo como seria a cidade. Também já li que Brasília é "a última cidade medieval do mundo" ou "a cidade medieval mais moderna do mundo", algo assim, devido ao princípio de isolamento do público. De acordo com Vesentini em seu A Capital da Geopolítica, ela foi realmente pensada para apartar: os próprios pontos de ônibus são distantes uns dos outros para evitar aglomerações. E não precisamos ser experts no assunto para perceber porque aqueles prédios só devem funcionar em clima seco, como é de fato o Planalto Central, pois quando chove há muita infiltração; suas paredes envidraçadas também funcionam como estufas onde o uso de ar condicionado permanente se faz obrigatório. Tudo bem "ecológico", que nossos críticos politicamente corretos esqueceram de comentar. Niemeyer, como admirador do vulgo Le Corbusier, quem dizia que "a arquitetura serve para disciplinar", não poderia deixar de pensar algo como espetáculo de concreto: é uma obra que não dialoga com o cidadão, apenas expõe para o mesmo. Se há um sentido naquilo, mais parece ser o de um cemitério vivo.

Naquele texto, eu chamei a atenção para o fato de que os intelectuais marxistas que pesquisam sobre urbanismo (caso de Marshall Berman) são extremamente severos na crítica ao trabalho de Niemeyer pelo fato de ele privilegiar a fluidez da circulação de pessoas, o que dificulta a vivência da cidade como local de encontro e visa afastar a população do poder político. Eu pretendia escrever um outro texto para complementar que os autores de esquerda radicais e não filiados ao marxismo também eram bastante duros nos ataques a Niemeyer e a Lúcio Costa, sendo que o melhor exemplo disso é justamente a tese de doutorado de José W. Vesentini, que deu origem ao livro A capital da geopolítica.

Conforme eu já expliquei em trabalhos publicados, Vesentini, embora profundamente influenciado por várias teses marxistas (inclusive algumas das mais economicistas e autoritárias), sempre foi um crítico bastante severo do marxismo. Como se lê nesse livro, suas fontes teórico-metodológicas remetem a Merleau-Ponty, Foucault, Castoriadis e Clastres, autores que Marcelo Lopes de Souza - outro não marxista que escreve coisas que Lênin assinaria embaixo... - classifica como representantes do "pensamento libertário", isto é, de uma tradição intelectual que faz a crítica tanto do capitalismo como do "socialismo burocrático". Ainda assim, as críticas que Vesentini faz a Niemeyer são essencialmente as mesmas do marxista Marshall Berman, conforme se lê no comentário acima.

Berman e Vesentini chegaram no mesmo lugar passando por caminhos bem diferentes. O primeiro é um marxista que se mantém fiel ao espírito racionalista do iluminismo e da obra de Marx, e procura construir um projeto socialista democrático partindo da tese de que, na revolução francesa, o projeto político burguês foi portador de valores universais. É por isso que Berman deplora a visão política de Niemeyer, um apoiador de Stálin, e a vincula à concepção que esse arquiteto tinha da cidade. Por seu turno, Vesentini usa as críticas de inspiração pós-moderna à razão e ao projeto iluminista para afirmar que o trabalho de Niemeyer não podia deixar de ser autoritário, já que o racionalismo iluminista está na base tanto do marxismo quanto do urbanismo moderno.

Ao fim e ao cabo, vemos que Berman e Vesentini convergiam nas críticas ao plano urbanístico de Brasília, mas se diferenciavam pelo fato de que o primeiro concebia o planejamento urbano como um instrumento para a realização da democracia, enquanto o segundo entende que o planejamento, fruto da razão iluminista, é autoritário em si mesmo. Nesse sentido, comparar as visões desses autores serve para reforçar meu argumento de que a grita dos militantes de esquerda contra os que refutaram a visão política obtusa e desumana de Niemeyer revela a ignorância desses militantes em relação ao que os próprios intelectuais de esquerda já escreveram sobre esse arquiteto. 

A crise política das esquerdas revela o desencontro entre teoria e prática, muito ao contrário do que os marxistas supõem serem capazes de fazer. E a alternativa proclamada pela esquerda que se diz "libertária" não passa de demagogia, pois o discurso anti-racionalista serve para malhar o planejamento sem ser capaz de sinalizar qualquer proposta concreta de política pública.

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