terça-feira, 5 de março de 2013

Millôr usou Sófocles para atirar em Collor e acertou Dirceu em cheio!

O livro O humor nos tempos do Collor (L&PM, 1992) traz uma coletânea de textos de Millôr Fernandes, Jô Soares e de Luís Fernando Veríssimo sobre o governo desse presidente que, pela primeira vez na história brasileira, foi apeado do cargo por vias rigorosamente constitucionais. O texto de que eu mais gosto nesse livro não é humorístico, porém. Trata-se de Antígona, de Sófocles, no qual Millôr reproduz uma passagem dessa famosa peça teatral.

Na cena em questão, o profeta Tirésias, que é cego, vai com seu guia até a presença de Creonte, rei de Tebas, para avisar que as lutas entre os pássaros do "rochedo dos augúrios", assim como as vísceras dos animais sacrificados aos deuses, vaticinaram a aproximação de tempos sombrios. Millôr não acrescenta qualquer comentário ao texto, e nem precisa: o paralelo entre a arrogância do tirano de Tebas e o estilo do presidente deposto fica evidente. Além disso, é fácil ver como as críticas do rei ao vidente simulam muito bem as críticas de Collor à imprensa e à oposição. 

Mas chamo a atenção para o fato de que, se Millôr foi certeiro (como sempre) ao usar Creonte para caracterizar Collor, ainda mais pertinente é comparar Creonte com José Dirceu! Afinal, conforme Joaquim Barbosa, este último chefiou um "esquema" que fraudava a democracia por meio do suborno sistemático de parlamentares. É só reparar na passagem que eu destaquei em negrito, abaixo. E os discursos usados por Dirceu, Marilena Chaui e pelo resto do PT em defesa dos mensaleiros não consistem em acusar a imprensa independente de ser "comprada"? Exatamente como Creonte faz ao rebater os vaticínos de Tirésias.  E acrescento ainda que a crítica de Tirésias ao rei tirano não é apenas uma crítica moral, mas também uma crítica, à moda da Antiguidade, institucional.

Não vou pôr o texto inteiro aqui, mas algumas falas que me parecem mais significativas como retrato do que foram os subterrâneos do governo Lula, e particularmente belas como texto dramático (confesso, sem exagerar, que chego a ficar arrepiado em certas passagens).

Boa leitura! 

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CREONTE – Velho, você e todos juntos atiram dardos contra mim como se não houvesse outro alvo no universo. E usam sobre mim, também, o anátema de todas as feitiçarias. A tribo dos videntes há muito que me usa, é uma raça que não me tem poupado. Conheço muito bem esses teus pássaros. Eles voam ao sabor do teu interesse. Sei que se abrir meus cofres eles voarão também de acordo com a minha vontade. Enche tua bolsa com o ouro branco de Sardes ou com o ouro das Índias, se preferes. Presta atenção, carcomido Tirésias; mesmo os mais espertos falham desgraçadamente quando enfeitam propósitos ignóbeis com belas palavras, inspiradas pelo amor do lucro. 

TIRÉSIAS – Ai de mim! Na minha idade já não posso ter a ambição de que me acusas. 

CREONTE – Há os que morrem roubando e amealhando, como se a vida fosse eterna. 

TIRÉSIAS – Ofendes porque não temes punições. 

CREONTE – Que disse eu que não fosse verdade? 

TIRÉSIAS – Que profetizo com intuitos baixos. 

CREONTE – Todos sabem que a tribo dos profetas não resiste ao suborno. 

TIRÉSIAS – Todos sabem que a raça dos tiranos só pensa em subornar. 


(. . .) 

TIRÉSIAS – É difícil imaginar, na minha escuridão, a escuridão de tantos, mais cegos do que eu. Os fornos não pararam, ouço as bigornas cantando noite e dia, fabricando lanças e carros de guerra. 

CREONTE – Que estás dizendo? Não percebes que sais do respeitado campo do profeta e penetras na área mortal da traição? Falas como adivinho ou como espião? 

TIRÉSIAS – Sei que te atingi terrivelmente – e duplamente. Como vidente e como cidadão de Tebas. Mas, tu me provocaste a dizer aquilo para que não tens resposta. O grande homem de punho de ferro sente, subitamente, que as mãos lhe estão tremendo. O avanço de uma guarnição obriga a outra. A violência gera a violência. Do inimigo morto nascem mil inimigos. Fere com o ferro. E o ferro se volta contra ele. Não tarda, Creonte. Não tarda. Já chega a tua hora. Vamos menino, já disse o que tinha que dizer, me leva para casa para que ele possa descarregar sua fúria sobre outros, enquanto aprende que o poder também tem seu limite. 

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