quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Lei que tornou obrigatório o ensino de história e cultura indígenas é inútil

A única vantagem que a velhice traz é a memória (mesmo assim, só se o Alzheimer não chegar...). Quando cursei o ensino fundamental, as aulas de história e de geografia seguiam uma diretriz nacionalista que, embora não fosse explícita, refletia-se nos conteúdos ensinados. Aprendíamos sobre os heróis nacionais e víamos a história do Brasil como um processo de construção coletiva na qual pessoas de diferentes raças e culturas se misturavam e cooperavam, criando um povo original. Daí que, todo mês de abril, quando se comemora o dia do índio, aprendíamos sobre as contribuições dos povos nativos à cultura brasileira contemporânea. O hábito de tomar banho diariamente, o consumo de alimentos como a mandioca, o uso de muitas palavras de origem indígena, e assim por diante. Certa vez, nossa escola foi visitada por três representantes de uma tribo indígena que foram lá para contar aos alunos como era o modo de vida deles.

Já quando cheguei ao ensino médio, nos anos 1980, deparei-me com as visões de mundo da história e da geografia críticas: os índios foram escravizados, expulsos de suas terras e exterminados pelos brancos, os quais eram movidos por uma sede de lucro ditada pela lógica infernal do capitalismo. No presente, os índios que sobreviveram são vítimas de forte preconceito, motivo pelo qual se fazia importante que os alunos valorizassem a cultura indígena. E então as professoras nos ensinavam que o hábito de tomar banho diariamente era herança cultural desses povos, que muitas palavras que usamos têm origem indígena, que nós comemos mandioca...

Mas então, veio a lei!

Em 2008, quando as simplificações do marxismo rastaquera já haviam se combinado fortemente ao discurso politicamente correto, chegamos à promulgação da lei n. 11.645, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura indígenas na educação básica de forma transversal, ou seja, abarcando os conteúdos de todas as disciplinas. 

Bem, o professor Giovani José da Silva, da UFMT, faz um elogio à promulgação dessa lei e dá várias sugestões e exemplos de conteúdos que as crianças devem aprender sobre o assunto. Ele menciona que, na Guerra do Paraguai, os kinikinaus e terenas forneceram comida para as tropas, ao passo que os kadiwéus forneceram cavalos e ainda participaram como guerreiros, lutando ombro a ombro com os demais soldados (Silva, 2012). Muito bem, estou de acordo que é interessante ensinar isso, mas acrescento que o resultado só será aquele que o autor espera se for mudada a forma de contar a Guerra do Paraguai para os alunos. Ainda hoje, ensina-se nas escolas a versão marxista fraudulenta de que o Brasil teria exterminado a maior parte da população paraguaia só para esmagar, a mando da Inglaterra, uma experiência de industrialização autônoma que, na verdade, nunca existiu. Falar da participação dos índios nesse genocídio que não ocorreu só serve para fazer os alunos pensarem que esses povos teriam sido fantoches do governo brasileiro assim como este teria sido um fantoche do imperialismo inglês.

Giovani da Silva dá também uma sugestão interessante quando fala na possibilidade de tratar do tema das missões religiosas para mostrar o modo como "a cultura cristã europeia e as culturas indígenas das Américas foram se mesclando e moldando hábitos, costumes e crenças ao longo do tempo" (Silva, 2012, p. 79). É uma boa ideia, na medida em que supera a tendência do pensamento politicamente correto a ver o trabalho de catequese realizado no Novo Mundo como um processo unilateral de aculturação que teria sido realizado apenas para facilitar o domínio dos nativos pelos europeus. Mais adiante, ele comenta a importância de mostrar a influência da cultura indígena no cotidiano dos alunos: 
Esse legado pode ser verificado, por exemplo, nos hábitos de dormir em redes ou de se tomar banho diariamente, além do consumo de alguns alimentos na culinária, como a mandioca e o milho. [...] Basta prestarmos atenção em nosso vocabulário, com diversas palavras de origem tupi, como Ibirapuera, Paraná, Itacoatiara, tapioca, jabuti ou, ainda, na farmacopeia: o uso do óleo de copaíba como eficaz analgésico e cicatrizante, e do jaborandi, para o tratamento de feridas na boca (Silva, 2012, p. 79).
Honestamente, tais exemplos provam a inutilidade da lei 11.645, pois tudo isso já era ensinado nos anos 1970, e assim continuou acontecendo dos anos 1980 em diante, conforme eu me lembro muito bem. Essa lei funciona como um bom exemplo do espírito legiferante dos brasileiros, de que trata Roberto DaMatta, que acreditam poder resolver todos os problemas com mais uma lei, e outra, e outra... Daí esse autor observar que temos milhões de leis, mas não cumprimos nenhuma à risca. No caso dessa lei mencionada, o que se tem é apenas uma redundância, pois ela tornou obrigatório ensinar o que já era ensinado há muitas décadas!

O que precisa ser repensado no ensino da história e da cultura indígenas são duas questões que não podem ser resolvidas com uma penada. Em primeiro lugar, os sentidos ideológicos que se emprestam a esse tipo de conteúdo (que passaram da visão de congraçamento nacional às teses maniqueístas da esquerda) e os vieses que tais sentidos podem gerar na seleção e apresentação dos conteúdos. Em segundo lugar, é preciso levar em conta que as maiores contribuições da cultura indígena ao Brasil contemporâneo podem não estar na cultura e no cotidiano dos alunos, mas sim na formação do território e da economia brasileiras. É o que se pode depreender, por exemplo, da leitura que Jorge Caldeira (2009) faz das relações entre brancos e tupis na formação do mercado interno brasileiro. 

Mesmo porque, se pensarmos bem, saber sobre itens de culinária, vocabulário e hábitos de higiene soa mais como colecionar curiosidades interessantes do que qualquer outra coisa. E eu nunca usei óleo de copaíba. Vou de aspirina mesmo...

Postagens relacionadas:
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CALDEIRA, J. História do Brasil com empreendedores. 1. ed. São Paulo: Mameluco, 2009.

SILVA, G. J. Todo dia é dia de índio. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 7, n. 82, p. 76-79, jul. 2012.

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