sábado, 25 de janeiro de 2014

"O Aleph" trai o vínculo entre a geocrítica e a geografia tradicional

O livro Geografias pós-modernas, de Edward Soja (1993), começa com uma citação do conto fantástico O Aleph, a qual descreve um ponto no espaço onde todos os lugares estão contidos e se fazem visíveis de todos os ângulos ao mesmo tempo. É uma bonita maneira de começar um livro, pois esse conto é a mais famosa e, sem dúvida alguma, uma das mais ricas e imaginativas criações de Jorge Luis Borges. Vou reproduzir as mesmas passagens citadas por Soja, mas usando o meu próprio exemplar traduzido do livro de Borges:
Então vi o Aleph. [...] começa, aqui, meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que seus interlocutores compartilham; como transmitir aos outros o infinito Aleph que minha temerosa memória mal consegue abarcar? [...] Além disso, o problema central é insolúvel: a enumeração, mesmo parcial, de um conjunto infinito. Naquele instante gigantesco, vi milhões de atos deleitáveis ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo: o que transcreverei, sucessivo, porque a linguagem o é. Algo, contudo, recuperarei (Borges, 2008, p. 148).
Soja usa essas passagens do conto para ilustrar o que seria o grande dilema epistemológico da geografia, qual seja, representar um objeto, o espaço, que é formado por uma multiplicidade de fenômenos simultâneos, por meio da linguagem, que é sucessiva como o fluxo do tempo. A citação serve também para que o autor introduza a ideia, que atravessa seu livro inteiro, de que a natureza "ativa" e o poder explicativo do espaço teriam sido deixados em plano secundário devido ao predomínio do "historicismo" nas ciências sociais e humanas.

Bem, eu já tive ocasião de refutar essas teses sobre o caráter "ativo" do espaço e sobre os problemas de um suposto "historicismo" num artigo publicado, como se pode ver aqui. Agora, tiro um tempinho das férias para chamar atenção para um outro ponto problemático do livro de Soja. É que, ao citar essas passagens literárias, Soja evidenciou que a geocrítica manteve-se de certo modo atrelada ao velho projeto de ciência de síntese que estava na base da geografia tradicional. Com efeito, se o espaço é essa simultaneidade de fenômenos descrita pelo autor com a metáfora do Aleph, então está claro que a "geografia humana crítica pós-moderna", proposta por Soja, visa explicar um objeto que abarca um vasto conjunto de fenômenos heterogêneos, o que remete para a concepção romântica de "todo" que dava base ao projeto de síntese da geografia tradicional.

E não fui eu quem percebeu isso, não. Paulo César da Costa Gomes, embora sem fazer referência específica a esse autor e nem à citação de Borges - Gomes, de fato, não costuma dar nome aos bois -, já havia observado o seguinte: 
De certa forma, a definição do espaço como objeto de estudos da geografia, ou daquilo que iria conferir identidade e marca geográfica a um fenômeno, não significou uma verdadeira ruptura com o projeto clássico da disciplina. Em outras palavras, a escolha de um objeto, largo e sem muitas delimitações, significou a possibilidade de continuar a manter as ideias da geografia como ciência de síntese, da relação entre o natural e o cultural, ou ainda, do espaço como um reflexo da sociedade, mantendo assim, em todas essas formas, a economia de uma reflexão teórica própria ou o desenvolvimento do debate epistemológico dentro da geografia (Gomes, 2009, p. 25).
Não por acaso, a ideia de fazer do espaço o objeto de estudo específico da geografia só serviu para jogar sobre esse conceito, que permaneceu impreciso e pouco operacional para pesquisas científicas, as mesmas ambiguidades e dificuldades de definição que já cercavam o projeto de ciência de síntese (Gomes, 2009).

Edward Soja foi feliz em escolher uma citação de O Aleph para abrir seu livro, pois isso trouxe um inegável charme às discussões introdutórias feitas ali. Mas essa escolha literária revelou muito mais do que ele gostaria: a fragilidade da proposta de explicar a sociedade, dando relevância à geografia, pelo estudo de um objeto que, à moda romântica, consiste num vasto conjunto de fenômenos simultâneos, razão pela qual este permaneceu imprecisamente definido e só serviu para a construção de teorias que consistem em formas variadas de fetichismo e determinismo espaciais.

Ademais, a intenção de Borges em O Aleph não era lamentar a falta ou os limites de uma ciência que buscasse explicar uma totalidade de fenômenos ocorrendo no espaço, mas expressar as sensações de maravilhamento e de aturdimento que surgem quando pensamos na vastidão e complexidade de um mundo feito de "milhões de atos deleitáveis e atrozes", bem como a impossibilidade de descrever sinteticamente esse conjunto. Ao falar da impotência inevitável da linguagem em face desse desafio descritivo, ele expressa e realça o maravilhamento e o aturdimento diante do que é tão grande e tão complexo. Já quando Soja usa a imagem do Aleph para ilustrar sua proposta epistemológica, empresta-lhe um objetivo diferente daquele do conto e, assim, revela implicitamente a raiz romântica de sua proposta e as imprecisões e vieses inevitavelmente contidos numa concepção totalizante de espaço.

Só para encerrar, digo que esse conto de Borges está entre os meus favoritos desse autor excelente, mas talvez a passagem que eu mais aprecie nessa obra, e por razões não científicas, é aquela que abre o conto:
Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que em nenhum instante se rebaixou ao sentimentalismo ou ao medo, notei que os porta-cartazes de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros; o fato me tocou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que aquela mudança era a primeira de uma série infinita (Borges, 2008, p. 136).
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BORGES, J. L. O Aleph (1949). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

GOMES, P. C. C. . Um lugar para a Geografia: contra o simples, o banal e o doutrinário. In: MENDONÇA, F.; SAHR, C. L. L.; SILVA, M. (org.). Espaço e tempo: complexidade e desafios do pensar e do fazer geográfico. Curitiba: Ademadan, 2009.

SOJA, E. W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. RJ: Jorge Zahar, 1993.

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