sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O mundo distorcido em nossas escolas

Fonte: http://atualidadescefi.blogspot.com.br/2013/03/oposicao-norte-e-sul.html Acesso em 16 out. 2015
Um dos ensaios do livro Não culpe o capitalismo alerta para a necessidade de rever as formas de regionalização do mundo ensinadas em nossas escolas (Lima, 2015). Quando o Muro de Berlim ainda estava de pé, ensinava-se que o mundo se dividia em países desenvolvidos e subdesenvolvidos, sendo os primeiros industrializados e os segundos exportadores de matérias-primas agrícolas e minerais. Essa regionalização derivava diretamente das teorias do subdesenvolvimento formuladas nos anos 50 e 60. Ensinava-se também que o mundo podia ser dividido em Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos, isto é, em três conjuntos de países caracterizados por serem, respectivamente, capitalistas industrializados, socialistas e capitalistas subdesenvolvidos. Depois do desmoronamento do socialismo, os países que compunham o Segundo Mundo foram divididos nas categorias "Norte" e "Sul", conforme a figura acima.


Essa última regionalização é amplamente usada nos livros didáticos nos dias de hoje, e é fácil perceber que a distinção entre Norte e Sul nada mais é do que uma versão repaginada das velhas teorias do subdesenvolvimento, que estabelecem o grau de industrialização como critério principal para distinguir os países desenvolvidos dos subdesenvolvidos. Afinal, só isso justifica incluir a Rússia e outras ex-repúblicas soviéticas, bem como os países do Leste Europeu, no espaço do Norte, ao passo que os países socialistas ou ex-socialistas não industrializados foram incluídos no Sul, como são os casos de Cuba, China e Mongólia.

Mas, ora, já nos anos 70 e 80 as regionalizações baseadas nos conceitos de desenvolvimento e subdesenvolvimento, bem como a divisão em três Mundos, eram criticadas  por colocarem no mesmo balaio países extremamente heterogêneos, tanto em termos de território, população, indicadores sociais e até mesmo quanto ao grau de industrialização (Lima, 2015). De fato, que sentido fazia colocar o Brasil, que alcançou um grau de industrialização bastante considerável, na mesma categoria de países de economia primária e com indicadores de qualidade de vida muitíssimo piores, como Uganda ou Somália? Nos livros didáticos de José W. Vesentini, procurava-se corrigir isso classificando-se o Brasil como "país subdesenvolvido industrializado". Ainda assim, ao descrever as condições sociais brasileiras, Vesentini sempre destacava que essas eram piores até do que as de outros países do Terceiro Mundo, e procurava justificar tal diagnóstico com dados estatísticos incompletos, mal selecionados e interpretados de forma completamente equivocada (Diniz Filho, 2013)

Didatismo ou distorção?

Tudo bem que, no ensino médio, é preciso abstrair detalhes para dar uma visão de conjunto do espaço mundial e realçar os processos econômicos e sociais que explicariam as desigualdades verificadas entre países. Mas o problema é que as teorias do subdesenvolvimento que estão na raiz da divisão Norte-Sul não são capazes de explicar realmente essas desigualdades e, o que é pior, passam a ideia errada de que os países da  "periferia" só têm a perder com a globalização e o comércio mundial (Diniz Filho, 2013, p. 169-195).

Apenas para dar uma ideia de como a divisão Norte-Sul é simplificadora, construí uma pequena tabela com dados extraídos do Gapminder World (uma excelente ferramenta de pesquisa para professores). Quem quiser checar as mesmas informações abaixo para outros países do mundo, é só clicar  no link indicado na Fonte da tabela.

Esperança de vida, PIB per capita e IDH
Países selecionados
2010
PIB per capita
Esperança de Vida
IDH
Argentina15.770760,792
Brasil14.040740,713
Chile19.200790,815
Hungria22.310750,813
México15.480760,766
Polônia21.400760,81
Rússia21.560690,751
Fonte: Gapminder World

Como se pode ver, o país com maior renda per capita é a Hungria, mas a  diferença entre esse país e o Chile não é grande. De outro lado, nota-se que o IDH chileno é igual ao da Polônia e ligeiramente maior do que o da Hungria. Já a Rússia apresenta IDH inferior ao do Chile, Argentina e México, vencendo só o Brasil nesse quesito. E, muito embora o Brasil seja o lanterninha em termos de PIB per capita e IDH, ainda consegue ter uma esperança de vida 5 anos superior à da Rússia. Aliás, quando se põe foco na esperança de vida, Polônia e Hungria estão praticamente na mesma situação da Argentina, México e Brasil. Finalmente, quando se comparam os extremos da Rússia e Chile, verifica-se que a esperança de vida neste último país é 10 anos mais alta!

Mas então por que a Rússia faz parte do Norte e o Chile está no Sul? Por que a Rússia é industrializada, enquanto o Chile é um exportador de cobre, vinho, frutas e pescado? Bem, mesmo essa distinção é equivocada, visto que, embora o parque industrial da Rússia apresente um tamanho expressivo, é pouco competitivo internacionalmente, o que revela deficiências em termos de inovação tecnológica. Prova disso é que a pauta exportadora da Rússia se concentra fortemente nas vendas de petróleo, gás natural, minerais metálicos e madeira.

Além do mais, se a industrialização da Rússia já qualifica esse país como parte do Norte, apesar de sua pauta exportadora típica do subdesenvolvimento, então por que Brasil e México estão no Sul? Ou por outra: não seria mais coerente classificar a Rússia como um "país subdesenvolvido industrializado" e incluí-la entre os países do Sul?

Por fim, vale notar que uma das justificativas para a criação do IDH era mostrar que só crescimento econômico não basta para gerar qualidade de vida, pois é preciso também avaliar a capacidade que os países têm de converter crescimento econômico em melhores condições de saúde e de educação. Bem, se for assim, não há como negar que o Chile é, dos países da tabela, aquele onde os recursos econômicos se convertem mais eficientemente em longevidade, ocorrendo o inverso no caso da Rússia. E o mesmo se nota quanto aos outros países latino-americanos citados, os quais, embora façam parte do Sul, conseguem igualar ou superar os ex-países socialistas em termos de esperança de vida, apesar de seus respectivos PIB per capita serem menores do que os da Hungria, Polônia e Rússia, que os livros didáticos consideram países do Norte...

As regionalizações do mundo ensinadas em nossas escolas não são apenas teoricamente equivocadas e anacrônicas, mas também ideologicamente enviesadas e pouco atentas aos fatos.

Postagens relacionadas

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DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013.

LIMA, F. R. F. Uma nova regionalização do mundo. In: LIMA, F. R. F.; DINIZ FILHO, L. L.; HEIDRICH, A. Não culpe o capitalismo. Curitiba: Fernando Raphael Ferro de Lima, 2015.

2 comentários:

  1. Excelente Diniz. Este aqui tem que ir para o segundo volume do Não Culpe o Capitalismo.

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  2. Interessante.

    O problema é que lamentavelmente estamos dentro de um sistema de pensamento difícil de sair. Por exemplo, mesmo que eu venha a produzir material formulado por mim com base nas novas linhas de pensamento acadêmicas, fico condicionado a algumas situações:

    1 Dentro de sala de aula é difícil alocar novas abordagens e pensamentos, por exemplo no ensino regular, já que dependeria da avaliação ou revisão do currículo de várias disciplinas. Nesse caso, sou apenas um professor numa série e, provavelmente, implantaria um caos no pensamento dos alunos, quiçá seria ridicularizado.
    2 Pensando no "futuro" dos alunos e no meu futuro, estamos encurralados, uma vez nas provas oficiais, por exemplo o vestibular, cobra-se ainda por conteúdos bem contestados pela comunidade científica. No caso do seu post, essa regionalização é bastante cobrada e está presente nos livros didáticos. Além disso, o conteúdo de um ano, em grande parte das vezes, está sistematizado em torno de uma teoria já bastante refutada, como a marxista, freudiana...
    3 Mesmo lendo bastante e seguindo uma outra linha de pensamento, ainda dependeria do "arsenal" pedagógico escolar, que quase sempre não se dialoga com novidades.

    Por enquanto listei essas, mas têm inúmeras mais.

    É nessas horas que seria interessante criar o conceito de "reset mental" e iniciar um novo diálogo. Marxismo e Keynesianismo são como vírus, fáceis de pegar, alguns são letais, e seus antídotos são pouco ventilados pelo ar.

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