segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A "geografia cidadã", nova moda no ensino de geografia, nasceu da geocrítica

Acabei de responder a uma pequena entrevista por e-mail com uma aluna de geografia que está elaborando uma monografia sobre a chamada "geografia cidadã". Uma das questões era sobre o possível conteúdo doutrinador dessa nova proposta de ensino de geografia. Minha resposta é que, de fato, a geografia cidadã reproduz as práticas doutrinadoras próprias da geografia crítica escolar, podendo até ser considerada uma reedição desta última com um rótulo diferente.

De fato, uma característica da geografia crítica escolar é reciclar velhas ideias com novos rótulos, conforme eu comento no livro Por uma crítica da geografia crítica (Diniz Filho, 2013, Localização 177). No caso em questão, vemos que as ideias que dão base à geografia cidadã começaram a ser elaboradas há mais de vinte anos por geógrafos cuja visão de geografia e de ensino são totalmente definidas pela geocrítica. 


Já em 1996, Milton Santos publicou o texto Por uma geografia cidadã, no qual a visão de cidadania era totalmente equacionada segundo os valores e ideologias socialistas do autor (Santos, 1996). Três anos depois, Lana S. Cavalcanti, ao discutir propostas de currículo para o ensino de geografia, afirmava que "é importante trabalhar com o objetivo de se garantir o direito à cidade. A luta pelo direito à cidade é um exercício de cidadania" (Cavalcanti, 1999, p. 123). Ora, o conceito de "direito à cidade" foi cunhado pelo filósofo marxista Henry Lefebvre e é central na geografia urbana crítica (Diniz Filho, 2013). No texto A cidade e a cidadania no ensino de geografia, que há mais de dez anos criticava a pouca importância dada ao conceito de cidadania nessa disciplina, o vínculo entre direito à cidade, cidadania, as teses marxistas sobre luta de classes e a visão da geocrítica sobre a globalização e o capitalismo aparece de forma bastante explícita (Souza; Silva; Magalhães, 2005). 

Por sua vez, Helena C. Callai, há quase vinte anos, fez uma discussão detalhada sobre a relação entre ensino de geografia e cidadania com base numa pesquisa realizada junto a alunos e professores dessa disciplina. Nesse trabalho, ela afirma: "[...] para que se efetive realmente a proposta de educação para a cidadania, é necessário que se politize a noção de cultura. E aí entra o papel do professor e a questão do poder que lhe é atribuído a partir de sua função de educador, considerando-se a cultura como hegemonia ideológica", sendo o conceito de "hegemonia ideológica" extraído da obra de Gramsci (Callai, 1999, p. 75).

Portanto, embora autoras como Cavalcanti e Callai não propusessem uma geografia escolar definida pela expressão "geografia cidadã", está claro que já faz cerca de duas décadas que a tal "formação do cidadão crítico" é encarada como um objetivo central do ensino de geografia e que a "cidadania" a ser construída era entendida como um conjunto de valores e de visões de mundo informadas pelos mesmos pressupostos que conformam a geografia crítica escolar. Nada realmente novo sob o sol.

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CALLAI, H. C. A geografia no ensino médio. Terra Livre, n. 14, 1999.

CAVALCANTI, L. S. Propostas curriculares de geografia no ensino: algumas referências de análise. Terra Livre, n. 14, 1999.

DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013. 

SANTOS, M. Por uma geografia cidadã: por uma epistemologia da existência. Boletim Gaúcho de Geografia, n. 21, ago. 1996.

SOUZA, M. J. M.; SILVA, A. R.; MAGALHÃES, S. M. F. A cidade e a cidadania no ensino de geografia. Revista da Casa da Geografia de Sobral, v. 6/7, n. 1, 2004/2005.

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