quinta-feira, 9 de março de 2017

Doutrinação: a escola serve para ensinar quais leis são "boas" e quais não são?

Quem pesquisa no Google a expressão "escola sem partido" vê logo de cara um link que é anúncio pago, possivelmente, por sindicatos de professores. Afinal de contas, o link remete a um texto totalmente contrário ao Projeto de Lei apelidado de "Escola Sem Partido". De outro lado, não há nenhum anúncio pago no Google para dar destaque aos textos favoráveis a esse PL ou, pelo menos, ao diagnóstico de que o problema da doutrinação no ensino existe, é grave e precisa ser enfrentado. Ainda assim, os sindicatos de professores sempre gostam de posar de vítimas do poder econômico...

Ironias à parte, o fato é que o artigo de Caio Zinet apresenta as refutações de especialistas em educação contra o site Escola Sem Partido e o PL citado. Neste post, vou tratar da primeira refutação, que é a seguinte:
Para o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, Daniel Cara, a neutralidade absoluta é impossível de ser atingida. "Não é possível (ser neutro) porque qualquer tema que se aborde leva um juízo de valor do professor, o que é importante. O que ele não pode fazer é limitar a aula a seu juízo de valor. Determinar a neutralidade política numa lei é um equivoco absoluto", afirmou (Zinet, 2016).

A questão da neutralidade no ensino é espinhosa mesmo. No caso da matemática e das ciências da natureza, existe neutralidade porque a matemática é uma forma de lógica pura e as ciências da natureza validam seus enunciados objetivamente por meio de experiências em laboratório e observações empíricas, as quais permitem identificar relações constantes de causa e efeito. O problema da neutralidade se apresenta nas ciências humanas e sociais, aí incluída a geografia humana. Como os fenômenos estudados por essas ciências são sempre multicausais, frequentemente difíceis de quantificar e, na maioria das vezes, é impossível validar os enunciados dessas ciências por meio de experimentos controlados, a objetividade das teorias em ciências humanas e sociais está sempre em causa. Ou seja, não existe um método que garanta de forma incontestável a objetividade dos enunciados em geografia humana, história, sociologia, etc.

Nesse sentido, estou de pleno acordo que não é possível atingir uma "neutralidade absoluta" no ensino dessas matérias. Contudo, é certo que os cientistas sociais só podem dar legitimidade científica aos resultados de suas pesquisas se adotarem métodos que visem conferir a maior objetividade possível a tais resultados. Noutras palavras, métodos que assegurem, tanto quanto for possível, que os resultados das pesquisas são independentes das convicções ideológicas e políticas prévias dos pesquisadores sobre o assunto pesquisado. E buscar incessantemente a implementação e aperfeiçoamento de métodos que possam garantir tal independência dos resultados é, sem dúvida, um compromisso que os cientistas sociais têm com a neutralidade ética, política e ideológica.

De modo análogo, os professores de História, Geografia e de Sociologia só podem legitimar a importância social e científica dos conteúdos dessas disciplinas se adotarem diretrizes que confiram a maior objetividade possível a tais conteúdos. E, logicamente, quanto maior a objetividade dos conhecimentos assim trabalhados, mais próximo da neutralidade política e ideológica estará o ensino. Vejamos três dessas diretrizes:

Fidelidade aos fatos. Ao falar sobre a questão da neutralidade, Daniel Cara ignora o grave problema de que os livros didáticos estão carregados de agressões aos fatos. Por exemplo, há livros didáticos publicados recentemente segundo os quais grande parte ou até a maioria da população brasileira passa fome (o que é uma inverdade completa) e que culpam a concentração fundiária e o agronegócio por problemas de desnutrição que já há muitos anos são apenas residuais (Diniz Filho, 2013).

Expor o pluralismo teórico. Nas ciências sociais, sempre há mais de uma teoria concorrente para explicar um mesmo fenômeno. Nesse sentido, é preciso adotar aquele que é, segundo o Escola Sem Partido, o quarto dos Deveres do Professor: "Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito".

Centrar a elaboração dos conteúdos no debate científico. Para demonstrar que é impossível deixar de haver juízos de valor numa aula, Daniel Cara "[...] cita como exemplo a forma de abordar nas aulas de História a redução da jornada de trabalho e a proibição do trabalho infantil. 'Em uma aula de História, quando o professor aborda esses temas, mostrando-se favorável, já considero a existência de um juízo de valor', afirmou" (Zinet, 2016).

Os exemplos foram infelizes, pois demonstram que, para esse especialista, os conteúdos a serem ensinados devem tratar de mudanças legislativas em si mesmas, não de teorias científicas em história que auxiliem os alunos a entender os elementos envolvidos nos debates políticos que sempre acompanham tais mudanças. Nos exemplos citados, um professor de História deveria expôr para os alunos pelo menos duas teorias que visam explicar o modo como a legislação trabalhista se transformou ao longo do tempo. Assim fazendo, mostraria aos estudantes que o aparato legal de um país não é estabelecido somente em função de questões de valor, pois envolve também fatores econômicos, como a produtividade do trabalho, e culturais, como as concepções de infância predominantes em cada período histórico. Se o professor fizer isso, não precisará afirmar que é contra ou a favor de determinada lei, pois já terá cumprido o seu papel de mostrar ao aluno as visões que a ciência tem sobre o assunto para que este possa se posicionar a respeito das leis de forma autônoma e com base num repertório mais amplo de informações históricas, econômicas e culturais.

Aula de História ou de OSPB ?

Esse último ponto põe em relevo a incoerência dos críticos do Escola Sem Partido. Afinal, eles dizem concordar com a ideia de que um professor não pode ficar limitado a expor seus juízos de valor em aula e também concordam que um professor não tem o direito de tentar fazer a cabeça do aluno em favor de suas próprias ideias políticas. Contudo, os exemplos que Daniel Cara deu provam que, em sua maneira de ver, o foco do ensino não deve estar nas teorias e debates científicos, mas sim na organização institucional e política do Brasil contemporâneo, tema sobre o qual o professor deve se posicionar por meio de juízos de valor, não com base nas explicações científicas concorrentes que tratam desse tema. 

No fundo, ele entende a disciplina de História como se fosse a velha Organização Social e Política do Brasil - OSPB, disciplina que era ensinada nas escolas décadas atrás (eu mesmo tive aulas dessa matéria). Se o ensino de História, Geografia, Sociologia, etc.,  for pensado para transmitir ao aluno conhecimentos sobre o aparato institucional do país de hoje e para avaliar esse aparato como sendo positivo ou negativo, então é claro que as abordagens científicas relacionadas a esse tema perderão espaço na exposição dos conteúdos na mesma medida em que os juízos de valor emitidos pelo professor irão se sobressair. 

Em suma, a fidelidade aos fatos empíricos, o respeito ao pluralismo teórico e a elaboração dos conteúdos das disciplinas de ciências humanas e sociais com foco nas teorias e debates científicos são três diretrizes essenciais para garantir, não uma neutralidade absoluta do ensino, algo que não existe mesmo, mas o compromisso que os pesquisadores e também os professores dessas áreas devem ter com a objetividade científica e, por conseguinte, com a neutralidade política na produção e transmissão de conhecimentos.

DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013.

ZINET, C. Especialistas desconstroem os 5 principais argumentos do Escola Sem Partido. Centro de Referências em Educação Integral. 21 jul. 2016. Disponível em: <http://educacaointegral.org.br/reportagens/especialistas-desconstroem-os-5-principais-argumentos-escola-sem-partido/> Acesso em: 07 mar. 2017.

7 comentários:

  1. Já disse várias vezes que fico muito feliz ao ler tuas postagens e perceber que ainda existe vida inteligente nas Ciências Humanas. Recentemente, trabalhei como professor temporário de Sociologia numa escola federal, para substituir um professor. Fiquei impressionado ao saber que os alunos do terceiro ano do ensino médio nunca haviam estudado nenhum conceito básico de Sociologia; segundo eles, o professor que substituí limitava as aulas da disciplina a apresentar suas opiniões e convicções políticas (não preciso dizer qual era a sua orientação ideológica). Caso algum aluno discordasse de seus posicionamentos, o professor brigava com esse estudante. A avaliação dos alunos? Todos tiravam dez, afinal, avaliar a aprendizagem e o trabalho intelectual de um aluno deve ser algo "conservador e de direita". A diretora da escola me confirmou essa situação (ou seja, não era delírio dos alunos), mas disse que era mais fácil mantê-lo trabalhando do que exonerá-lo, em função da burocracia pública.
    Embora meus alunos soubessem muito bem quais eram as opiniões do professor, não tinham conhecimentos mínimos de política: não sabiam quais eram as funções de cada um dos Três Podres, não sabiam as diferenças entres os cargos políticos, não haviam estudado como se dá o processo legislativo no Brasil, não entendiam as diferenças entre as formas e sistemas de governo... Ora, a função da escola não é incutir ideologias políticas - de esquerda ou de direita - nos alunos, mas possibilitar o entendimento de conceitos básicos da Ciência Política, de como funciona o sistema político no Brasil, etc. Comecei a abordar esses temas com os alunos, deixando bem claro que o objetivo não era fazer proselitismo político. Depois de um trimestre, uma aluna veio me elogiar, pois eu a tinha ajudado a perceber o que é efetivametne estudar Sociologia.
    Relato isso por pelo menos duas razões: 1) é possível, sim, ensinar Ciências Humanas e Sociais sem fazer propaganda política de esquerda e 2) muitos alunos estão sendo prejudicados por terem aulas com professores que não ensinam o que deveriam, mas se limitam a dar suas opiniões (o que, a propósito, é muito mais fácil e cômodo do que planejar aulas, estudar, pensar na melhor forma de abordar os temas, avaliar, etc.). É preciso haver um entendimento muito mais claro do que é o "Escola sem partido", que não é o "Escola sem mordaça", como já ouvi muitos dizerem.

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    1. É interessante notar que, embora doutrinadores desse tipo sejam, ou seguidores de Paulo Freire, ou ao menos professores que respeitam muito a "pedagogia" desse autor, me parece que, na maior parte das vezes, eles preferem fazer aulas expositivas do que usar o famoso "diálogo freiriano".

      É que, embora o tal diálogo seja manipulado, já que consiste em ficar o tempo todo confrontando o senso comum dos alunos com as ideologias tolinhas em que os freirianos acreditam, ainda assim parece que esses doutrinadores se sentem mais à vontade expondo suas opiniões e achismos por 50 minutos do que em organizar uma discussão em aula.

      Será que é porque assim dá menos trabalho? Ou é porque, por mais manipulado que seja um diálogo, sempre faz surgir mais questionamentos incômodos do que numa exposição?

      Talvez seja um pouco das duas coisas. De qualquer modo, ambas as hipóteses ajudam a explicar o motivo de os freirianos dizerem que Paulo Freire é difícil de ser aplicado nas escolas...

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  2. Caro, lanço algumas questões para reflexão:

    1. Concordamos que não é possível objetividade absoluta em ciências sociais, se a exposição do pluralismo teórico é uma condição para maior objetividade, é preciso que tenhamos clareza que a própria ideia de "objetividade" científica é historicamente erigida não só com base em fatos, porém em exercícios de poder; mais ainda: será que a sua universalização como saber científico na modernidade não é - inseparavelmente - um processo de imposição cultural e não apenas "a fidelidade aos fatos"? Fatos empíricos são observados a partir de "lentes teóricas", "concepções culturais de mundo", "posicionalidades sociopolíticas", "contextos espaciais" e "trajetória pessoal e coletiva". Ou seja, o próprio critério de objetividade em ciência deve ser posto à prova pela pluralidade de teorias sobre o que é objetividade em ciências. Logo, o que é objetividade não tem um aspecto de escolha por mais que queiramos torná-la neutra?

    2. Parece simplificadora a relação "maior objetividade = neutralidade política/ideológica", pela multicausalidade que já apontou e pelo que você sabe: instituições são atravessadas interesses, dados objetivos se prestarem a diferentes resultados interpretativos apropriados - até bancados - por agentes neste jogo de poder na qual não estamos isentos, Dias Filho.
    3. O termo "fato" se aplica à coisas de diferentes graus de complexidade. Não discordo de você no que se refere a erros graves em conteúdos didáticos (o exemplo do agronegócio). Porém, isto desconecta o agronegócio da responsabilidade por mazelas sócioambientais no campo? Acompanhei comunidades que tiveram lavouras queimadas, professor expulso de vicinal jurado de morte por ensinar metragem cúbica aos estudantes (potencializava o questionamento aos madeireiros), acompanho o processo de destruição territorial de grupos nativos na Amazônia pelo avanço do agronegócio. E, ao que se insinua na sua fala, uma criança indígena tem que estudar a pluralidade de teorias em nível de igualdade! E baseado nas prerrogativas da escola sem partido: o professor que ensinou metragem cúbica estava incitando os filhos de pequenos agricultores contra a injustiça dos madeireiros (pela inseparabilidade de um conhecimento objetivo e o contexto de vivência na qual é mobilizado), o que seria passível de punição!

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    1. Conforme está claro no meu texto, a objetividade científica, em ciências humanas e sociais, está ligada à aplicação de métodos de pesquisa que garantam, tanto quanto possível, que os resultados da pesquisa sejam INDEPENDENTES das convicções prévias que o pesquisador possa ter quanto às causas dos fenômenos investigados, sejam essas convicções de ordem ideológica, cultural, religiosa ou científicas mesmo. Sem esse cuidado, não há como legitimar científica e até socialmente a validade dos enunciados. Afinal de contas, como um cientista social pode esperar contribuir de alguma maneira para o conhecimento das causas dos fenômenos e para os debates públicos se os resultados de suas pesquisas não diferem dos discursos elaborados por jornalistas, políticos, religiosos ou por um militante de qualquer tendência?

      Nesse sentido, embora referenciais teórico-metodológicos diferentes se baseiem em propostas distintas de como atingir a objetividade científica, a questão da independência ou autonomia dos resultados se impõe para todos os referenciais. Para ficar em dois exemplos, correntes científicas afinadas com o neopositivismo e com o marxismo carregam visões distintas do que seja objetividade e de quais são os métodos que devem ser empregados para atingi-la, mas tanto num caso como no outro objetividade implica buscar a independência ou autonomia dos resultados das pesquisas. É exatamente isso o que eu explico no livro didático “Fundamentos Epistemológicos da Geografia” (Curitiba: Ibpex, 2009).

      Portanto, estou de acordo com você que “o próprio critério de objetividade em ciência deve ser posto à prova pela pluralidade de teorias sobre o que é objetividade em ciências”. Contudo, ressalvo que a sua crítica à noção de objetividade científica reproduz um vício de pensamento próprio do pós-modernismo de viés marxista, o qual consiste em:

      Negar a objetividade e validade de qualquer teoria apoiada em observações empíricas e estatísticas com o discurso de que estas são só “ideologias”, “ciência imperial”, “imposição cultural”, etc., mas sem demonstrar concretamente por que e em que tais informações estariam distorcendo a realidade;
      Afirmar a validade de teorias que fundamentam projetos político-ideológicos com teor anticapitalista e antiliberal dizendo simplesmente que tais teorias se baseiam em “racionalidades contra-hegemônicas” ou numa “ciência multicultural”, mas sem explicar quais cuidados teriam sido tomados para garantir que essas teorias críticas são independentes das convicções ideológicas e políticas dos pesquisadores que as formularam.

      Esse viés de pensamento se manifesta claramente no item 2 do seu comentário, sobretudo quando você diz: “instituições são atravessadas interesses, dados objetivos se prestarem a diferentes resultados interpretativos apropriados - até bancados - por agentes neste jogo de poder na qual não estamos isentos”. Ora, essa conversa permite descartar qualquer pesquisa científica que contrarie as suas convicções ideológicas dizendo simplesmente “ah, claro, as conclusões dessa pesquisa servem aos interesses de X ou Y, então é tudo falso”, sem nem se dar ao trabalho de analisá-la de modo aprofundado e sem tecer críticas lógicas e empíricas consistentes.

      CONTINUA...

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    2. CONCLUSÃO

      Nesse sentido, respeitar o pluralismo na elaboração dos conteúdos didáticos significa não apenas ensinar teorias diferentes para a explicação de um mesmo fenômeno, mas também evitar o caminho fácil de desqualificar determinadas teorias lançando suspeitas desse tipo e de afirmar a validade de outras teorias alegando simplesmente que tais teorias foram formuladas por pesquisadores que falam em nome dos fracos e oprimidos.

      Portanto, eu defendo que “uma criança indígena tem que estudar a pluralidade de teorias em nível de igualdade” se com isso você quer dizer o mesmo que eu acabei de escrever no parágrafo anterior desta minha resposta.

      Já quanto às ações criminosas que você cita, o professor pode mencionar casos assim quando explicar teorias críticas do capitalismo e do agronegócio na medida em que os teóricos críticos usam acontecimentos desse tipo como evidências para apoiar as teorias deles, mas contanto que o professor não omita as evidências usadas pelos teóricos de outras vertentes para demonstrar que o capitalismo e o agronegócio têm repercussões sociais e ambientais positivas.

      Quanto ao exemplo que você deu da metragem cúbica, vale dizer que esse conhecimento, em si mesmo, é neutro, pois não existe viés político-ideológico em fórmulas matemáticas. Logo, não há problema nenhum se o professor ensinar um conhecimento matemático útil às pessoas de determinado grupo social. Ao contrário, é louvável.

      O que não é aceitável à luz dos deveres do professor é a transformação da sala de aula num palanque que serve para colocar este grupo contra aquele, não importando quais sejam os dois grupos. Além do mais, sempre é bom lembrar que o conhecimento, em si mesmo, é libertador e crítico. Uma vez que o indivíduo aprende a calcular metragem cúbica, poderá aplicar esse conhecimento com vistas a atender aos seus próprios interesses econômicos, sendo desnecessário que o professor transforme suas aulas em comício para fazer o aluno entender tal coisa.

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  3. (continuação)

    3. Há algo de historicismo em seu modo de como deve proceder o(a) professor(a) e é estranha a lógica de que "ensinar como funciona o aparato de Estado HOJE, LOGICAMENTE faz com que as teorias percam força para juízos de valor de professores".[?]

    4. Concordo com você sobre a hegemonia marxista na geografia humana e em conteúdos didáticos - o que não invalida importantes descobertas científicas. Porém: a) o método leva diretamente à doutrinação? b) utilizar as mesmas armas de simplificação e desqualificação de propostas concorrentes: "ideologias tolinhas freirianas" - ainda que fora do seu texto oficial e ao título de comentário - avança no entendimento dos complexos contextos de produção do saber-poder em que vivemos?

    5. Gosto da ideia "centrar a elaboração dos conteúdos no debate científico", e o debate científico em ciências sociais será feito com a pura abstração ou sua contextualização no plano do vivido?

    6. Como evidente defensor da escola sem partido e diretamente contrário ao marxismo em sua doutrinação (metodológico também?) você: "Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresenta aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade – as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito?"
    Este último ponto foi uma provocação, evidentemente. Interessante seu ponto de vista, embora me pareça reificar o sentido de ciência e fragilizar o caráter formativo separando-o de atitudes comprometidas com projetos - incluindo aí o projeto de autonomia que é, em si, uma posição política manifesta! (não fere o 1º dever do ESP, caso um estudante não quiser ser exposto a pluralidade para autonomia?).
    Isso me lembrou as regras na parede da Fazenda da Revolução dos Bichos (Orwell), crítica evidente ao socialismo, mas sobretudo crítica à ilusão de que regras de tão ampla generalização podem se eternizar em sentido e significado em contextos sociais de relações de força (e não raro de caprichos) em que vivemos.
    Abraço.

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    1. Olá, Wallace

      Continuando minha resposta, vale retomar, sobre o item 3 do seu comentário, a passagem completa do post que você menciona:

      “Se o ensino de História, Geografia, Sociologia, etc., for pensado para transmitir ao aluno conhecimentos sobre o aparato institucional do país de hoje e para avaliar esse aparato como sendo positivo ou negativo, então é claro que as abordagens científicas relacionadas a esse tema perderão espaço na exposição dos conteúdos na mesma medida em que os juízos de valor emitidos pelo professor irão se sobressair”.

      Portanto, quando eu digo que a visão de Daniel Cara conduz a que os juízos de valor do professor se sobreponham aos conteúdos científicos, é porque ele acha que o professor deve tratar da legislação em vigor com o fim de avaliar quais leis são “boas” e quais não são. Mas o objetivo não deve ser esse; o objetivo deve ser o de mostrar ao aluno um repertório de informações factuais e de ideias científicas com base no qual ele possa se posicionar por si mesmo.

      Sobre o item 4, devo dizer que o problema da doutrinação não está nem no método de pesquisa científica, nem no método de ensino: está nos critérios de seleção dos conteúdos. Se o professor decide que só vai ensinar teorias críticas do capitalismo e que quaisquer outras teorias serão tratadas superficialmente e desqualificadas como “ideologias úteis aos interesses das classes dominantes”, então ele será um doutrinador. Esse é o ponto.

      Nesse sentido, e já respondendo ao item 5, não vejo problema que o professor contextualize as teorias no mundo vivido dos alunos, mas desde que ele não selecione os conteúdos do modo como expliquei acima. Afinal, será que apenas as teorias críticas do capitalismo podem ser contextualizadas?

      Sobre a sua provocação, acho bastante salutar que me perguntem se eu procuro ser fiel ao pluralismo nas minhas aulas. Na verdade, eu trato disso explicitamente numa seção do meu livro “Por uma Crítica da Geografia Crítica”, seção essa intitulada “Sou Também um Doutrinador?”. Esse livro pode ser baixado gratuitamente em PDF, e eu escrevi essa seção justamente para expor minha conduta em sala de aula e estimular um debate geral sobre o tema nas universidades.

      Eu também defendo que o ensino deve estimular o aluno a pensar com autonomia, mas penso essa noção de um modo que não tem nada a ver com a concepção freiriana de autonomia. Afinal, na visão de Freire e de outros autores críticos, a ideia de autonomia está vinculada à ideia de “conscientização”, que nada mais é do que uma visão de mundo informada por ideologias socialistas. Em Freire, ser “autônomo” e “consciente” significa ser um revolucionário socialista, então o ensino pautado pelas ideias de Freire acaba sendo sempre, e explicitamente, um exercício de doutrinação política, ideológica e até partidária.

      Abraço

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